O Sítio
entre o Céu e a Terra
Entrar
numa Unidade de Cuidados Intensivos para recém-nascidos pode ser um choque. Os
pais das crianças que aí recebem tratamento sentem-se muitas vezes perdidos ou
afastados dos filhos por toda aquela tecnologia agressiva e desconhecida,
geradora de medo ou impotênc
A
nós, médicos e enfermeiros, compete-nos eliminar essas barreirase medos e
permitir que os pais possam rapidamente estabelecer com os filhos uma relação
afectiva forte – elemento importante para o sucesso global da nossa terapêutica.
Este
texto tenta ser mais um contributo para que tal seja possív
Era
uma vez um sítio entre o céu e a terra onde havia um castelo pequenino.
Nesse
sítio moravam umas Gentes Vestidas de Verde que viviam entre o saber e o
desconhecido. Gentes que gostavam de Meninos.
Não
tinham nomes, nesse sítio, mas chegavam lá muitas crianças que ainda não
eram, vindas de todas as terras.
Algumas
chegavam com muito frio, outras quase pretas e furiosas por terem sido mal
tratadas pelos crescidos.
Muitos
tremiam tanto, tanto, que era preciso contar-lhes uma longa história para eles
sossegarem e perderem o medo que tiveram durante a travessia de um túnel
cumprido e escuro, e tão apertadinho que mal dava para eles passarem.
|
|
Chegavam
alguns que contavam que de repente tudo tinha ficado escuro e que quando
quiseram gritar por ajuda engoliram um líquido preto e espesso que os impedia
de respirar.
Também
lá apareciam uns, mas que se iam logo embora, todos pintados de Verde. Esses
eram lavados muito bem e depois ficavam a secar debaixo de uma luz que parecia o
sol, mas que devia ser diferente do sol porque em vez de ficarem todos
bronzeados, ficavam era todos muito branquinhos.
Havia
lá outros com ar de quem já eram antes de serem. Tinham quase sempre os olhos
muito abertos e eram todos encurrilhadinhos.
Pareciam
velhotes. Daqueles que da vida já sabem tudo. Muito magrinhos e com ar de quem
caiu numa pocinha de lama. Estavam sempre com fome e o mais engraçado é que
quando não comiam às horas certas ficavam com muitos tremeliques.
|
|
E
havia também os outros. Os Meninos de Amanhã.
Meninos
que mal chegavam se iam embora para um sítio desconhecido que deve ser só
deles. As Gentes Vestidas de Verde ficam sempre muito tristes quando os vêem
transformar-se numa nuvem muito pequenina, tão pequenina que quando se olhava
outra vez, já tinham desaparecido. Um dia, não se sabe quando, vão voltar e
ensinar às Gentes Vestidas de Verde aquilo que elas ainda não sabem, para que
não haja mais Meninos de Amanhã.
De
Amanhã porque vão voltar para ser.
No
Castelo havia também uma sala especial, cheia de caixinhas transparentes.
Iam para lá os meninos que ainda não eram para ser.
Chegavam
sempre muito preocupados porque não tinham tido tempo de aprender a respirar e
ainda nem sequer sabiam tomar o leite.
|
|
Eram
todos muito pequenininhos e aquelas Gentes Vestidas de Verde começavam
logo a fazer muitas coisas à volta deles. Mais tarde, quando já lhes
tinham ensinado a respirar, saíam das caixinhas e contavam que ao
princípio tinham tido muito medo mas que depois se divertiam imenso.
Só não percebiam lá muito bem porque é que os penduravam nuns fios
ligados a umas naves espaciais que tinham luzes vermelhas que apagavam e
acendiam. Também contavam que ficavam cheios de vergonha quando se
esqueciam de respirar.
É que sempre que isso acontecia, descia pelos fios um anãozinho de
nariz vermelho, que até piscava, muito zangado e aos berros. Nessas alturas as
Gentes Vestidas de Verde ouviam aquele barulho todo e vinham logo a correr.
Abriam a porta da caixinha transparente e diziam “respira Princesa (ou Príncipe,
claro) senão o anãozinho zangado sopra-te no nariz”.
Só
que às vezes era tão difícil respirar e estava-se já tão cansado que as
Gentes Vestidas de Verde tinham pena e então juntavam-se à volta da caixinha
transparente a conversar e então iam buscar outra nave espacial que tinha
muitos tubos.
|
|
Metiam uma palhinha no nosso nariz, ligavam aos tubos da Nave que
Sabia Respirar e era muito bom porque pela palhinha do nariz começavam a chegar
bolinhas de vento muito quentinho, que iam e vinham, sem se ter nenhum trabalho.
Era bom entre outras coisas porque se ficava com uma cor mais bonita e como não
se tinha nenhum trabalho a respirar ficava todo o tempo para sonhar e para
conversar com os Meninos das outras caixinhas. Mas
essa boa vida não durava sempre e nem sequer valia a pena fazer de conta que
ainda não se sabia respirar porque aquelas Gentes Vestidas de Verde parece que
adivinhavam e então abriam a porta e diziam “Atenção, atenção, a Nave
Espacial que Sabe Respirar vai partir”. Tiravam a palhinha do nosso nariz e
pronto, começávamos a respirar sozinhos.
Os nosso pais que passavam o dia a
fazer-nos festinhas ficavam tão contentes que nós desistíamos de fazer
batota e começávamos a respirar muito bem e a tomar o leite
todo.
|
|
Esse era um tempo muito bom porque tudo ficava muito calmo à nossa volta
e até as Gentes Vestidas de Verde que passavam que tinham a mania de andar todo
o dia a picar os nossos calcanhares deixavam de o fazer. Ficava então muito
tempo para ver melhor o que se passava à nossa volta. As Gentes Vestidas de Verde
riam-se muito quando nos vinham visitar e faziam caretas e contavam histórias.
Claro que eram histórias inventadas porque nós bem víamos que lá no mundo
delas as coisas nem sempre corriam bem e deviam até ser muito complicadas.
Havia também tempo para conversar com um pássaro branco de bico vermelho, que
olhava para nós todo o dia e nos contava como era o mar e que lá fora havia
noite e dia e que era muito bom voar e ver todas as coisas bonitas que ainda
havia no mundo deles. Um
dia, não se sabe porquê, mudava tudo. Uma Gente Vestida de Verde chegava,
abria a porta grande e dizia “Princesa, estás tão linda e crescida! Vamos
sair da caixinha transparente. Anda ouvir coisas que nunca ouviste. Agora vais
passar o dia ao colo dos teus pais, que te vão ensinar tudo o que nós não
sabemos ensinar”. E saíamos mesmo!
|
|
Ao
princípio era tudo muito complicado para nós. Os crescidos têm a mania de
fazer muito barulho e depois estavam sempre a puxar-nos o nariz. Não era por
mal. Só que a certa altura já era aborrecido. E depois, ainda para mais,
vestiam-nos uns fatos, que eram os melhores que eles tinham, mas que faziam
tanta impressão na nossa pele. Divertido era ver a cara dos nossos pais.
Ficavam o dia inteiro de boca aberta e faziam barulhos tão esquisitos que nós,
para eles não ficarem tristes, acabávamos por sorrir.
Às
vezes havia música.
Um
dia chegava sobre nós uma imensa Nave Espacial que atirava uns raios que não
se viam mas serviam para nos tirar uma fotografia.
|
|
Ficávamos todos muito feios
porque só se viam os osso e o que estava por dentro de nós. Uma Gente Vestida
de Verde virava então a fotografia para a luz, chamava as outras Gentes e dizia
“Está tudo lindo. Vai poder ir embora”. E nós que estávamos ali tão bem,
e até já tínhamos amigos, íamos mesmo embora. Não contentes com isso ainda
nos picavam outra vez o calcanhar. Nunca se saberá porquê!.. manias.
Depois
de resolverem isso, sem sequer nos perguntarem se estávamos de acordo,
escreviam a nossa vida toda nuns livrinhos cor-de-rosa para as Princesas e azuis
para os Príncipes.
Não sei se é justo contarem assim a nossa vida toda mas
parece que é importante para que as outras Gentes Vestidas de Qualquer Maneira,
que estão no Mundo de fora, possam tratar melhor de nós.
|
|
Mas
o máximo é quando chegam os nossos pais para nos levarem.
Vêm
todos muito bem vestidos e contentes mas muito nervosos. A única coisa
aborrecida é que têm a mania de trazer umas roupas que ainda picam mais e
vestem-nos tanta coisa que nem podemos mexer lá dentro. E tem laços que
apertam e botões que magoam. Que saudades daquele tempo quando ainda não éramos
mas já estávamos a ser naquelas caixinhas transparentes! Todos nus e
quentinhos. Enfim, como dizem os crescidos “Agora começa uma vida nova”.
Vamos
lá ver como é.
Os
nossos Pais trazem então uma enorme cesta e somos postos lá dentro. Põem muito
cobertores por cima de nós, o que não é nada agradável, porque fica muito
pesado e além disso quando saímos para o mundo cá fora nem é possível ver
se é verdade que há pássaros e sol e árvores e flores, Gentes boas e Gentes
más e um mar com barcos.
Só
mais tarde é que vamos poder ver isso tudo... que pena!
|
|
Foi
tão bom naquele tempo em que as Gentes Vestidas de Verde nos ensinavam a
respirar e a gostar de viver. Foi tão bom que já sabemos o que vamos ser
quando formos grandes
Quando
formos grandes queremos ser sempre meninos mas...VESTIDOS DE VERDE.
Era
assim naquele tempo. De repente no nosso País tudo começou a mudar. Pessoas
vestidas de todas as cores juntaram-se e conversaram durante muito, muito tempo.
Não queriam ver tantos Meninos de Amanhã e outros, que, sendo de Hoje, nunca
chegavam a ser Meninos. É que depois de nascerem não riam, não brincavam,
outros não andavam e nunca podiam ir para a Escola. Tinham um mundo tão
pequenino que muitas vezes não ultrapassava o quarto onde viviam. Não era
justo.
|
|
As
Pessoas Vestidas de Todas as Cores decidiram que, a partir daí, as Crianças
só podiam nascer em Sítios entre o Céu e a Terra e nunca mais nos Sítios do
Nada.
As
Pessoas Vestidas de Todas as Cores começaram a andar por todo o País e
mandaram fechar quase 200 Sítios do Nada e organizaram e equiparam cerca de 50
Sítios entre o Céu e a Terra. Os mais velhos ensinaram os mais novos e, em
menos de quatro anos, quase desapareceram as Crianças que nunca chegaram a Ser.
Claro
que as Pessoas Vestidas de Todas as Cores nunca estão satisfeitas. Têm também
uma Nave Espacial, que agora é pintada de amarelo e tem umas letras a dizer
Ambulância de Recém-Nascidos que, todos os dias e todas as noites do ano, vai
buscar Meninos, muito, muito doentes e os traz muito quentinhos e com muito
cuidado para os Sítios Onde Há Quase Tudo.
Sabiam
que de todos os Países do Mundo o nosso é o único que tem esse Serviço ?
Não sabiam, pois não ? Mas é verdade!
|
|
Em
todo o País as Pessoas Vestidas de Todas as Cores ficaram mais felizes e os
Pais mais sossegados. Em menos de 10 anos o nosso País deixou de ser aquele
onde havia mais Crianças de Amanhã em toda a Europa e passou a ser dos
melhores do Mundo !
Também
é bom não esquecer umas Pessoas de Quem Ninguém Fala. Trabalham numas
casinhas distribuídas por todo o País e tomam conta das Mães. Chamam-lhes
Médicos de Família e Enfermeiras de Saúde Materno-Infantil. Sem as Pessoas de
Quem Ninguém Fala nunca teria sido possível conseguir o que se conseguiu.
Essas
Pessoas têm aparelhos especiais para ver as Crianças que Estão Para Ser e,
quando ficam preocupadas, mandam as Mães para os Sítios Onde Há Quase Tudo,
para serem tratadas.
Isso
é muito bom porque assim há cada vez menos Mães e Meninos de Amanhã.
|
|
Também
é preciso não esquecer as Meninas(os) Que Estão Lá Sempre. São as
Enfermeiras(os) que estão nos Sítios onde Há Quase Tudo e não só
tratam mas também cuidam das Crianças muito doentes.
Hoje,
as Pessoas Vestidas de Todas as Cores, esperam que as Pessoas Vestidas Com
Factos Escuros e Com Gravatas da Cor das Circunstâncias nunca se esqueçam das
Crianças muito doentes. Às vezes ficam um bocadinho esquecidas porque as
Crianças não votam, não têm partido político nem sindicato e só falam com
as Pessoas Vestidas de Todas as Cores. É por isso que Pessoas Vestidas de Todas
as Cores nunca as vão abandonar e falarão sempre por elas para defenderem os
seus Direitos.
Hoje,
quando as Crianças partem para os seus Sítios, onde vão continuar a crescer,
dizem-nos sempre: quando formos grandes queremos ser sempre Meninos,
mas...Vestidos da Cor do Arco Íris.
FIM
Fonte:http://scinp.no.sapo.pt/sitio.htm |
Nenhum comentário:
Postar um comentário