terça-feira, 11 de novembro de 2014

O Sítio Entre o Céu e a Terra

O Sítio entre o Céu e a Terra

Entrar numa Unidade de Cuidados Intensivos para recém-nascidos pode ser um choque. Os pais das crianças que aí recebem tratamento sentem-se muitas vezes perdidos ou afastados dos filhos por toda aquela tecnologia agressiva e desconhecida, geradora de medo ou impotênc
A nós, médicos e enfermeiros, compete-nos eliminar essas barreirase medos e permitir que os pais possam rapidamente estabelecer com os filhos uma relação afectiva forte – elemento importante para o sucesso global da nossa terapêutica.
 Este texto tenta ser mais um contributo para que tal seja possív


Era uma vez um sítio entre o céu e a terra onde havia um castelo pequenino.
Nesse sítio moravam umas Gentes Vestidas de Verde que viviam entre o saber e o desconhecido. Gentes que gostavam de Meninos.
Não tinham nomes, nesse sítio, mas chegavam lá muitas crianças que ainda não eram, vindas de todas as terras.
Algumas chegavam com muito frio, outras quase pretas e furiosas por terem sido mal tratadas pelos crescidos.
Muitos tremiam tanto, tanto, que era preciso contar-lhes uma longa história para eles sossegarem e perderem o medo que tiveram durante a travessia de um túnel cumprido e escuro, e tão apertadinho que mal dava para eles passarem. 

Chegavam alguns que contavam que de repente tudo tinha ficado escuro e que quando quiseram gritar por ajuda engoliram um líquido preto e espesso que os impedia de respirar.
Também lá apareciam uns, mas que se iam logo embora, todos pintados de Verde. Esses eram lavados muito bem e depois ficavam a secar debaixo de uma luz que parecia o sol, mas que devia ser diferente do sol porque em vez de ficarem todos bronzeados, ficavam era todos muito branquinhos.
Havia lá outros com ar de quem já eram antes de serem. Tinham quase sempre os olhos muito abertos e eram todos encurrilhadinhos.

Pareciam velhotes. Daqueles que da vida já sabem tudo. Muito magrinhos e com ar de quem caiu numa pocinha de lama. Estavam sempre com fome e o mais engraçado é que quando não comiam às horas certas ficavam com muitos tremeliques.
E havia também os outros. Os Meninos de Amanhã. 
Meninos que mal chegavam se iam embora para um sítio desconhecido que deve ser só deles. As Gentes Vestidas de Verde ficam sempre muito tristes quando os vêem transformar-se numa nuvem muito pequenina, tão pequenina que quando se olhava outra vez, já tinham desaparecido. Um dia, não se sabe quando, vão voltar e ensinar às Gentes Vestidas de Verde aquilo que elas ainda não sabem, para que não haja mais Meninos de Amanhã. 
De Amanhã porque vão voltar para ser.
No Castelo havia também uma sala especial, cheia de caixinhas transparentes.  Iam para lá os meninos que ainda não eram para ser.
Chegavam sempre muito preocupados porque não tinham tido tempo de aprender a respirar e ainda nem sequer sabiam tomar o leite. 

Eram todos muito pequenininhos e aquelas Gentes Vestidas de Verde começavam logo a fazer muitas coisas à volta deles. Mais tarde, quando já lhes tinham ensinado a respirar, saíam das caixinhas e contavam que ao princípio tinham tido muito medo mas que depois se divertiam imenso. Só não percebiam lá muito bem porque é que os penduravam nuns fios ligados a umas naves espaciais que tinham luzes vermelhas que apagavam e acendiam. Também contavam que ficavam cheios de vergonha quando se esqueciam de respirar. 
É que sempre que isso acontecia, descia pelos fios um anãozinho de nariz vermelho, que até piscava, muito zangado e aos berros. Nessas alturas as Gentes Vestidas de Verde ouviam aquele barulho todo e vinham logo a correr. Abriam a porta da caixinha transparente e diziam “respira Princesa (ou Príncipe, claro) senão o anãozinho zangado sopra-te no nariz”.
Só que às vezes era tão difícil respirar e estava-se já tão cansado que as Gentes Vestidas de Verde tinham pena e então juntavam-se à volta da caixinha transparente a conversar e então iam buscar outra nave espacial que tinha muitos tubos.
 Metiam uma palhinha no nosso nariz, ligavam aos tubos da Nave que Sabia Respirar e era muito bom porque pela palhinha do nariz começavam a chegar bolinhas de vento muito quentinho, que iam e vinham, sem se ter nenhum trabalho. Era bom entre outras coisas porque se ficava com uma cor mais bonita e como não se tinha nenhum trabalho a respirar ficava todo o tempo para sonhar e para conversar com os Meninos das outras caixinhas. Mas essa boa vida não durava sempre e nem sequer valia a pena fazer de conta que ainda não se sabia respirar porque aquelas Gentes Vestidas de Verde parece que adivinhavam e então abriam a porta e diziam “Atenção, atenção, a Nave Espacial que Sabe Respirar vai partir”. Tiravam a palhinha do nosso nariz e pronto, começávamos a respirar sozinhos. 
Os nosso pais que passavam o dia a fazer-nos festinhas ficavam tão contentes que nós desistíamos  de fazer batota e começávamos a respirar muito bem e a tomar o leite todo.

 Esse era um tempo muito bom porque tudo ficava muito calmo à nossa volta e até as Gentes Vestidas de Verde que passavam que tinham a mania de andar todo o dia a picar os nossos calcanhares deixavam de o fazer. Ficava então muito tempo para ver melhor o que se passava à nossa volta. As Gentes Vestidas de Verde riam-se muito quando nos vinham visitar e faziam caretas e contavam histórias.  
Claro que eram histórias inventadas porque nós bem víamos que lá no mundo delas as coisas nem sempre corriam bem e deviam até ser muito complicadas. Havia também tempo para conversar com um pássaro branco de bico vermelho, que olhava para nós todo o dia e nos contava como era o mar e que lá fora havia noite e dia e que era muito bom voar e ver todas as coisas bonitas que ainda havia no mundo deles. Um dia, não se sabe porquê, mudava tudo. Uma Gente Vestida de Verde chegava, abria a porta grande e dizia “Princesa, estás tão linda e crescida! Vamos sair da caixinha transparente. Anda ouvir coisas que nunca ouviste. Agora vais passar o dia ao colo dos teus pais, que te vão ensinar tudo o que nós não sabemos ensinar”. E saíamos mesmo!

Ao princípio era tudo muito complicado para nós. Os crescidos têm a mania de fazer muito barulho e depois estavam sempre a puxar-nos o nariz. Não era por mal. Só que a certa altura já era aborrecido. E depois, ainda para mais, vestiam-nos uns fatos, que eram os melhores que eles tinham, mas que faziam tanta impressão na nossa pele. Divertido era ver a cara dos nossos pais. Ficavam o dia inteiro de boca aberta e faziam barulhos tão esquisitos que nós, para eles não ficarem tristes, acabávamos por sorrir.
Às vezes havia música.
Um dia chegava sobre nós uma imensa Nave Espacial que atirava uns raios que não se viam mas serviam para nos tirar uma fotografia.


Ficávamos todos muito feios porque só se viam os osso e o que estava por dentro de nós. Uma Gente Vestida de Verde virava então a fotografia para a luz, chamava as outras Gentes e dizia “Está tudo lindo. Vai poder ir embora”. E nós que estávamos ali tão bem, e até já tínhamos amigos, íamos mesmo embora. Não contentes com isso ainda nos picavam outra vez o calcanhar. Nunca se saberá porquê!.. manias.
Depois de resolverem isso, sem sequer nos perguntarem se estávamos de acordo, escreviam a nossa vida toda nuns livrinhos cor-de-rosa para as Princesas e azuis para os Príncipes. 
Não sei se é justo contarem assim a nossa vida toda mas parece que é importante para que as outras Gentes Vestidas de Qualquer Maneira, que estão no Mundo de fora, possam tratar melhor de nós.

 Mas o máximo é quando chegam os nossos pais para nos levarem.
Vêm todos muito bem vestidos e contentes mas muito nervosos. A única coisa aborrecida é que têm a mania de trazer umas roupas que ainda picam mais e vestem-nos tanta coisa que nem podemos mexer lá dentro. E tem laços que apertam e botões que magoam. Que saudades daquele tempo quando ainda não éramos mas já estávamos a ser naquelas caixinhas transparentes! Todos nus e quentinhos. Enfim, como dizem os crescidos “Agora começa uma vida nova”.
Vamos lá ver como é.
Os nossos Pais trazem então uma enorme cesta e somos postos lá dentro. Põem muito cobertores por cima de nós, o que não é nada agradável, porque fica muito pesado e além disso quando saímos para o mundo cá fora nem é possível ver se é verdade que há pássaros e sol e árvores e flores, Gentes boas e Gentes más e um mar com barcos.
Só mais tarde é que vamos poder ver isso tudo... que pena!

Foi tão bom naquele tempo em que as Gentes Vestidas de Verde nos ensinavam a respirar e a gostar de viver. Foi tão bom que já sabemos o que vamos ser quando formos grandes
Quando formos grandes queremos ser sempre meninos mas...VESTIDOS DE VERDE.


Era assim naquele tempo. De repente no nosso País tudo começou a mudar. Pessoas vestidas de todas as cores juntaram-se e conversaram durante muito, muito tempo. Não queriam ver tantos Meninos de Amanhã e outros, que, sendo de Hoje, nunca chegavam a ser Meninos. É que depois de nascerem não riam, não brincavam, outros não andavam e nunca podiam ir para a Escola. Tinham um mundo tão pequenino que muitas vezes não ultrapassava o quarto onde viviam. Não era justo.

 As Pessoas Vestidas de Todas as Cores decidiram que, a partir daí, as Crianças só podiam nascer em Sítios entre o Céu e a Terra e nunca mais nos Sítios do Nada.
As Pessoas Vestidas de Todas as Cores começaram a andar por todo o País e mandaram fechar quase 200 Sítios do Nada e organizaram e equiparam cerca de 50 Sítios entre o Céu e a Terra. Os mais velhos ensinaram os mais novos e, em menos de quatro anos, quase desapareceram as Crianças que nunca chegaram a Ser.
Claro que as Pessoas Vestidas de Todas as Cores nunca estão satisfeitas. Têm também uma Nave Espacial, que agora é pintada de amarelo e tem umas letras a dizer Ambulância de Recém-Nascidos que, todos os dias e todas as noites do ano, vai buscar Meninos, muito, muito doentes e os traz muito quentinhos e com muito cuidado para os Sítios Onde Há Quase Tudo.
Sabiam que de todos os Países do Mundo o nosso é o único que tem esse Serviço ? Não sabiam, pois não ? Mas é verdade!

 Em todo o País as Pessoas Vestidas de Todas as Cores ficaram mais felizes e os Pais mais sossegados. Em menos de 10 anos o nosso País deixou de ser aquele onde havia mais Crianças de Amanhã em toda a Europa e passou a ser dos melhores do Mundo !
Também é bom não esquecer umas Pessoas de Quem Ninguém Fala. Trabalham numas casinhas distribuídas por todo o País e tomam conta das Mães. Chamam-lhes Médicos de Família e Enfermeiras de Saúde Materno-Infantil. Sem as Pessoas de Quem Ninguém Fala nunca teria sido possível conseguir o que se conseguiu.
Essas Pessoas têm aparelhos especiais para ver as Crianças que Estão Para Ser e, quando ficam preocupadas, mandam as Mães para os Sítios Onde Há Quase Tudo, para serem tratadas.
Isso é muito bom porque assim há cada vez menos Mães e Meninos de Amanhã.
Também é preciso não esquecer as Meninas(os) Que Estão Lá Sempre. São as Enfermeiras(os) que estão nos  Sítios onde Há Quase Tudo e não só tratam mas também cuidam das Crianças muito doentes.
Hoje, as Pessoas Vestidas de Todas as Cores, esperam que as Pessoas Vestidas Com Factos Escuros e Com Gravatas da Cor das Circunstâncias nunca se esqueçam das Crianças muito doentes. Às vezes ficam um bocadinho esquecidas porque as Crianças não votam, não têm partido político nem sindicato e só falam com as Pessoas Vestidas de Todas as Cores. É por isso que Pessoas Vestidas de Todas as Cores nunca as vão abandonar e falarão sempre por elas para defenderem os seus Direitos.
Hoje, quando as Crianças partem para os seus Sítios, onde vão continuar a crescer, dizem-nos sempre: quando formos grandes queremos ser sempre Meninos, mas...Vestidos da Cor do Arco Íris.

FIM

Fonte:http://scinp.no.sapo.pt/sitio.htm

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